O peixe precisa ser temperado agora para que fique no ponto na hora que for para o forno, as hortaliças trazidas do mercado pelo marido precisam ser guardadas, minha filha precisa ser orientada a ir arrumar os brinquedos que deixou espelhados, meu pai precisa que eu me sente um pouco e converse com ele no nosso eterno diálogo de palavras repetidas para que ele consiga ouvir adequadamente, mas fujo por uns instantes para finalizar a leitura pungente e leve de “A vida que ninguém vê” da premiadíssima repórter Eliane Brum.
Por um momento, esqueço toda essa trivialidade que nos consome e deturpa nossos olhos. É preciso enxergar além, sair do nosso cotidiano de obrigações e obstáculos infindos. É preciso ter o olhar do cronista que se deslumbra diante das histórias que, de tão comuns, tornam-se extraordinárias.
Com a missão de extrair crônicas reais de rostos tão comuns, a jornalista contou histórias como a do gaúcho do cavalo de pau, visto por toda a cidade como louco, entretanto, quando indagado pela repórter, revelou que sabia que seu cavalo era uma vassoura, mas montado nele sonhava que estava num cavalo de verdade, porque “sem invenção a vida fica sem graça. Fica tudo muito difícil”.
E assim, finda a leitura, posso voltar para os meus rituais de sábado sabendo que esses momentos representam uma subversão à realidade. São essas pausas imersas na ficção, ou na fenda quase inexistente entre vida e arte, que busco forças para compreender nosso quinhão humano e, consequentemente, sempre efêmero. Sem esquecer que tudo vai depender sempre do jeito de olhar.