sábado, 2 de março de 2019

   Por uma vida de olhares menos automatizados

   O peixe precisa ser temperado agora para que fique no ponto na hora que for para o forno, as hortaliças trazidas do mercado pelo marido precisam ser guardadas, minha filha precisa ser orientada a ir arrumar os brinquedos que deixou espelhados, meu pai precisa que eu me sente um pouco e converse com ele no nosso eterno diálogo de palavras repetidas para que ele consiga ouvir adequadamente, mas fujo por uns instantes para finalizar a leitura pungente e leve de “A vida que ninguém vê” da premiadíssima repórter Eliane Brum. 
   Por um momento, esqueço toda essa trivialidade que nos consome e deturpa nossos olhos. É preciso enxergar além, sair do nosso cotidiano de obrigações e obstáculos infindos. É preciso ter o olhar do cronista que se deslumbra diante das histórias que, de tão comuns, tornam-se extraordinárias. 
   Com a missão de extrair crônicas reais de rostos tão comuns, a jornalista contou histórias como a do gaúcho do cavalo de pau, visto por toda a cidade como louco, entretanto, quando indagado pela repórter, revelou que sabia que seu cavalo era uma vassoura, mas montado nele sonhava que estava num cavalo de verdade, porque “sem invenção a vida fica sem graça. Fica tudo muito difícil”.
    E assim, finda a leitura, posso voltar para os meus rituais de sábado sabendo que esses momentos representam uma subversão à realidade. São essas pausas imersas na ficção, ou na fenda quase inexistente entre vida e arte, que busco forças para compreender nosso quinhão humano e, consequentemente, sempre efêmero. Sem esquecer que tudo vai depender sempre do jeito de olhar.

terça-feira, 11 de julho de 2017

"Só levo a certeza de que muito pouco eu sei, ou nada sei"

       Há quanto tempo não passo por essas paragens? Hoje precisei vir me visitar. O silêncio não foi falta de deslumbramentos cotidianos. Pelo contrário, a chegada da minha filha trouxe-me um espiral de poesia pura: a vida consubstanciada em pequenos gestos, toques, sons. Sim. Não escrevi muito. Mas observei com mais força as minhas redondezas. Enquanto empurrava o carrinho de bebê no sol da manhã, vi a mulher passando com um monte de malva para fazer vassoura. Essa imagem me jogou na minha infância de visitas a lugares de muitas árvores e terreiros de chão firme, terra clara, incrivelmente limpos pelas vassouras de mato. 
     Senti a maternidade mudar e moldar também outras amigas e vi cumplicidade nisso. Perdi-me em álbuns de fotografias para já ajuntar as frestas da própria história que minha filha vai contar sobre si mesma. Reinventei-me no trabalho, passei por muito aprendizado também pessoal e, no meio disso tudo, é preciso sempre verificar se ainda estamos lá.  Os versos de Milton Nascimento nunca deixaram de ecoar aqui dentro "Por tanto amor, por tanta emoção /A vida me fez assim / Doce ou atroz, manso ou feroz / Eu, caçador de mim [...]"  
    É duro perceber que a idade não traz todas as respostas. Sentadas tomando um açaí, nos raros momentos que o tempo nos deixa apenas curtir o tempo,  eu e minha amiga de outras eras ainda temos as mesmas inquietações da época da faculdade. É claro que o tempo traz  algumas respostas: a paz do amor companheiro, as alegrias e tristezas divididas com amigos de verdade, o aprendizado com os filhos, a necessidade de se aproveitar a dádiva do presente. Mas algumas lacunas ficam e é  nesse espaço que mora o novo, a criatividade, o sonho. As pessoas mais admiráveis que conheço são humanamente incompletas e é bom  sentir tanto o divino que se manifesta em cada ser, como também nossa mediocridade humana.
     Mas ainda assim, é preciso rascunhar respostas e repetir as mesmas perguntas: o que me move? Sou a melhor versão de mim? Quais referências quero deixar para meus filhos? As perguntas mudam, cada um tem as suas. Mas a labuta em busca das respostas é importante. Para tanto, é bom que não nos afastemos muito. E o que nos traz para perto da verdadeira essência? Pode ser um trecho de um filme, uma oração, a imagem das mãos longas, sábias e boas do avô que já se foi, pode ser o sorriso de um filho, pode ser a adrenalina do esporte, pode ser o som da risada dos amigos, pode ser o cheiro dos lençóis da sua terra natal, pode ser o desenho do próximo projeto, a  cor do produto do que antes era hobby e virou achado de vida, ou a luz da tela do computador no processo de escrita. Esses fragmentos de "eu" que nos formam, e tudo que é humano é um mosaico bonito de ser observado. Sigamos espiando.


                 (Imagem: http://rosemarientreaspas.blogspot.com.br/2013/09/vassoura-de-guanxuma.html)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Beatriz

       Ontem escrevi seu nome em um tecido. Ao escolher a cor da linha, manusear a agulha e planejar o melhor desenho das letras, senti-me ligada às mães de todos os tempos. Cuidar dos detalhes para sua chegada e, principalmente, sentir você crescendo aqui dentro tem preenchido meus dias.
      Estou inserida no mistério mais encantador do universo. Mais do que no corpo, a vida  vai se consubstanciando em pequenos farelos. Enquanto você se forma, também uma mãe vai se construindo aqui fora entre a ansiedade e a alegria, percebendo suas reações a determinadas canções, à presença de algumas pessoas, em cada alimento que ingiro.
       Meu lado materno sempre foi latente. Envolvi-me, com sinceridade, no nascimento de priminhos, afilhados e filhos de amigos. Entretanto, muito além da parte prática de cuidados diários que você exigirá, o que mais me preocupa é como ajudá-la se formar como ser humano. Como dosar as quimeras e a razão? Como poupá-la das pequenas e grandes tragédias que envolvem o mundo? De que forma mostrar que a complexidade da vida também está presente nas coisas simples e, por vezes, banais?
     Sempre imaginamos que o momento ideal de se ter um filho é quando estamos realizados. Não falo somente de questões materiais e práticas como plano de saúde, grana para necessidades de última hora, teto, estabilidade profissional. Refiro-me à completude como pessoa. Ter respostas para (quase) tudo, já ter resolvido todos os dilemas existenciais. Hoje sei que se esperasse esse momento, você nunca chegarei. Filha, serei sua mãe com meu quinhão de erros, medos e pedaços, mas lanço-me ao desafio. Quero aprender com e por você. Não enxugarei as lágrimas que, mãe vulnerável que sou, você me verá derramar, mas espero nunca perder a capacidade de rir das minhas próprias trapalhadas.
      Às vezes, minha parcela humanamente egoísta anda temerosa de que eu me perca com sua chegada. Medo de mudar drasticamente os hábitos, não ter tempo para me deleitar com coisas que gosto... mas sei que, embora traga sérias mudanças, você será a minha parcela mais nobre, a quem dedicarei, com gosto, meus melhores momentos. Hoje tudo são conjunturas, mas em breve, meus medos serão concretizados em dilemas práticos. Agora, estou em estado de esperança: esperar, cheia de amor, por você.
   

terça-feira, 17 de abril de 2012

Fato consumado

"Se toda hora é hora
De dar decisão
Eu falo agora
No fundo eu julgo o mundo
Um fato consumado
E vou-me embora" (Djavan)

Ando nostálgica ultimamente...
Aquela mistura estranha de saudades de coisas que nem vivi e melancolia. Às vezes por causa de uma fachada de uma casa, uma ruela empoeirada, um samba antigo, um verso banal. 
Talvez pelas pressões que passei nos últimos tempos, pelo passo importante que vou dar daqui a pouquíssimos dias, só sei que ando saudosa das tardes preguiçosas da adolescência, de ter tempo para conversar com as amigas e de ler... sem obrigações... apenas para buscar o prazer das palavras. Apenas para penetrar o silêncio e tentar me encontrar.
Passei uma tarde de domingo maravilhosa com amigas e familiares. Que delícia reconhecer em cada história e olhar a amizade. Tão Bom ser paparicada e receber votos sinceros de felicidade. Melhor ainda é saber que a vida vai adicionando coisas novas, cenas inusitadas que, aos poucos, também vão se integrando a minha história.
Mas hoje, só um pouquinho, deixo as obrigações, medos e metas para ser nostálgica. Cantarolar os versos de Djavan que dançava sozinha na sala e pensar numa época em que ser 'adulto' e ter 30 era algo tão distante quanto a lua.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Não: Devagar

imagem: http://www.ociodooficio.com.br/

Fim de ano...
Cada um já preparando sua retrospectiva. Tenho a tendência de achar que o saldo é sempre positivo. Os obstáculos, mais do que meros sofrimentos, também são utilizados pela vida para nos ensinar algo e trazem experiência.
Ultimamente, ando reclamando muito do tempo, ou melhor, da falta dele e ao receber de presente da minha amiga/irmã/mãe "Fia", uma linda agenda para 2012 recheada de muitos poemas, trechos de músicas e imagens de obras de tarde, me deparei com um poema de Fernando Pessoa, sob um de seus heterônimos, com o qual me identifiquei de cara! Ando mesmo pedindo a vida para ir mais devagar, ao mesmo tempo que saboreio as pressas diárias. Eu? Contraditária ? Não... apenas polissemicamente humana demais. Enquanto corro entre socorrer os dramas familiares, terminar um mestrado, organizar um casamento, vou cantarolando o samba de um minuto: "Devagar, esquece o tempo lá de fora, devagar, esquece a rima que for cara".

Não: devagar.

Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...                                                                    
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

Álvaro de Campos, in "Poemas"